Bate-papo sobre o livro “A fórmula da emoção na fotografia de guerra”

Em comemoração aos 10 anos do curso de Jornalismo, a ESPM-SP promoveu um bate-papo com Leão Serva, em parceria com as Edições Sesc-SP, para falar sobre o lançamento de seu livro “A fórmula da emoção na fotografia de guerra”.

“A fórmula da emoção está no clique, passa pelo editor e pela reação dos espectadores”, disse Leão Serva no evento, realizado em 15 de junho, que contou com a presença do fotógrafo e professor Henrique Lorca e do professor titular da Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP Norval Baitello Jr.  

Criado pelo historiador e intelectual alemão Aby Warburg (1866-1929), a “fórmula da emoção” é um conceito que define alguns modelos de gestualidade e expressões humanas universais passíveis de reconhecimento quase que automaticamente. Inspirado em Warburg, Leão Serva decidiu levar tal conceito para as fotografias realizadas em campos de batalha e criar relações com imagens produzidas pela humanidade sobre o tema, desde pinturas rupestres até esculturas, gravuras, pinturas e demais iconografias.

“O livro trata da constituição do fotojornalismo e sua ligação com outras artes como a pintura e o cinema nas quais é possível perceber fórmulas de emoção que habitam o imaginário coletivo, nem sempre de modo consciente, mas com grande poder de mobilização”, afirmou Lorca. 

Leão Serva é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e realiza pesquisa de pós-doutorado sobre emoções despertadas pelas fotografias de conflito. É também diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo. 

“Cobertura de guerra provoca aumento das audiências dos meios de comunicação. Qual a razão disso?”, disse Leão, explicando a questão que norteou sua pesquisa de doutorado, da qual o livro é fruto. “Fotografia de guerra vicia.”

Norval Baitello Jr., orientador da tese de doutorado de Leão, conta que ele teve acesso a um acervo com mais de 1500 fotos do Instituto Warburg, em Londres, reunido durante a I Guerra Mundial. “Vivemos numa era de profusão e de inflação das imagens. E com poucos instrumentos para entender o poder de hipnotizar que essas imagens têm sobre nós. Fórmula da emoção é para entender o que tem dentro de uma imagem, que nos hipnotiza, que nos prende, nos atrai, nos seduz, que nos aterroriza também”, afirmou Norval. “O livro vai além. Leão faz painéis que são grandes geradores de atração dos nossos olhares.”

Confira aqui os principais trechos da conversa:

Leão Serva: Eu procurei fazer painéis semelhantes ao que o Warburg fazia justapondo imagens. Eu me inspirei nos painéis produzidos pelo Warburg para começar a entender o impacto da fotografia de guerra. Fui conhecer o instituto Warburg e ali me mostraram as fotografias que ele tinha feito ao longo da I Guerra Mundial. Ninguém sabia nada sobre aquela coleção. E eu passei dias olhando aquelas fotos. No meio disso eu achei fotos do Trótski e fui identificando que, mais para trás, fui vendo que havia estações do ano e consegui compreender o que seria aquela coleção totalmente sem legenda. E fiquei seduzido pela ideia que eu pudesse identificar aquelas fotos, apresentei esse projeto para a PUC, recebi uma bolsa da Capes e pude ir lá sistematizar uma forma de trabalho, de pesquisa e justaposição e até entender várias coisas: uma delas é que se dizia que essa coleção podia não ser do Warburg, e meu trabalho identificou cerca de 50 manuscritos do Warburg em fotografias e a segunda conclusão foi que está ali a I Guerra inteira.

Dizem que o homem domesticou os cães, depois os cavalos e depois os gatos. O cavalo foi um companheiro do homem até o fim da primeira guerra mundial. Então, ver aqueles cavalos, tantos cavalos mortos. Metade dos cavalos da primeira guerra mundial morreram. E aquelas cenas são muito fortes. E eu então compus um painel sobre cavalos. 

Outra coisa que chama a atenção é que naquela guerra houve a migração de milhões de pessoas. Semelhante ao que nós estamos vendo agora. Mostra como todos somos iguais e como o risco da tragédia migratória pode acometer a todo mundo.

Norval Baitello Jr.: De onde vem a força da paixão? Também vem de uma pós-vida. 

Leão Serva: A ideia de que as imagens sobrevivam no presente. É disso que se trata na igreja, nos jogos, nas relações com os povos antigos. Alguns gestos estão no primata antes de estarem no sapiens. Warburg leu Darwin. Hoje se consegue identificar o som que os chimpanzés emitem quando veem uma cobra. A cobra atemoriza a gente por conta de um sentimento arcaico de desespero. E essa mesma serpente aparece na cultura humana em que a mais famosa é a de Adão e Eva. Mas o Warburg explorou um fato que no Gênesis, quando está no deserto conduzindo os judeus do Egito para a terra prometida, em algum momento, Moisés exibe uma serpente como uma expressão, na verdade, contrária, que hoje a gente chamaria talvez de superstição, significando a proteção deles contra uma série de serpentes que estavam atacando o povo naquela época. O Warburg explora isso de que aquela imagem teve uma inversão. Da terrível serpente de Adão e Eva se torna protetora de um episódio do velho testamento. O Warburg explora isso de como ela vai migrando e ela é um sentimento arcaico. E eu me lembro de quando a gente estava fazendo a pesquisa aconteceu em Ribeirão Preto aquela seca terrível e se noticiou que a cidade viveu uma espécie de evento coletivo que um padre conduziu um rito ligado à serpente para gerar água na cidade de Ribeirão Preto. E as pessoas acreditaram naquilo. Isso é 2014, 2015. A serpente, a fé, o temor é algo que é uma imagem viva. Esse é um exemplo de uma imagem. E as imagens são a fórmula da emoção na medida em que elas transmitem a emoção de gestos muito significativos.  Os gestos arcaicos são imagens presentes e eu explorei esses gestos nas fotografias de guerra 

Norval Baitello Jr.: Inclusive aquela foto clássica da guerra do Vietnã, da menina sendo queimada por napalm.

Leão Serva: E também do monge. Antes de a guerra do Vietnã ser propriamente uma guerra, o monge budista vai no meio da cidade de Saigon, avisa as agências noticiosas que alguma coisa ia acontecer, mas não fala o quê, ele vai lá joga gasolina no seu próprio corpo, ateia fogo e quando foram abafar o caso já não dava mais. Então aquela cena correu o mundo inteiro mostrando a oposição dos religiosos vietnamitas ao poder do Vietnã do Sul, apoiado pelos Estados Unidos. Um aspecto que eu queria comentar é que a questão do impacto da fotografia é uma questão fortemente ética. Por exemplo, eu discuti com a Edições Sesc a questão da publicação dessas fotos. A gente teve essa discussão de quanto a gente estaria disseminando aquela cena com a publicação no livro. A fotografia de guerra tangencia muito fortemente a discussão sobre a ética da imagem, a ética do impacto da imagem, da publicação de uma imagem que de certa forma pode provocar um sensacionalismo.

Norval Baitello Jr.: E sobre o poder patologizante, impactante no sentido de gerar trauma de determinadas imagens, talvez fosse interessante você falar sobre esse poder traumatizante das imagens.

Leão Serva: Fundamentalmente a ideia de que o estresse pós-traumático foi definido em razão de estudos com americanos que voltaram da II Guerra Mundial. Mas não se tinha muita clareza de que essa síndrome assolava não só os soldados, mas também muito fortemente os médicos, enfermeiros e jornalistas. Eu me lembro que depois da guerra da Bósnia eu voltei para Londres e eu acordava com o barulho do trem pensando que aquilo fosse um barulho de metralhadora. Um dos sintomas do estresse pós-traumático é o ressurgimento da emoção. Há estudos hoje que mostram que os pilotos de drones americanos, sentados em uma sala confortável em Houston, no Texas, tomando Coca-cola e comendo docinhos, enquanto comandam um drone que está bombardeando alguém lá no Oriente Médio, esses pilotos têm o mesmo estresse pós-traumático do piloto de caça, que pilota um avião em guerra. E depois começaram a ver que os fotógrafos e os editores de imagens das agências noticiosas, sentados em seus confortáveis escritórios em Nova York ou em Londres, eles tinham também síndrome de estresse pós-traumático que era sentida pelo fotógrafo no momento que ele estava no campo. Então da gente trabalha com a ideia de que a imagem é um veículo de trauma. Ela transporta o mesmo trauma mesmo que você não esteja diante da cena traumatizante. E é muito impactante se a gente imaginar que diariamente nos games, que cada vez simulam com mais realismo cenas de batalha, eles transmitem o estresse, se não o mesmo, mas muito próximo do estresse vivido por um soldado no front no momento em que ele está atirando. E essa emoção, esse trauma, está aí disseminado nos meios de comunicação. 

Henrique Lorca: O que o fotógrafo deve fazer? Deve fotografar ou ajudar?

Leão Serva: Esse caso da menina do Vietnã tem várias implicações e existe uma questão também que a gente vê nos tratados de ética e moral. Digamos que a ética é eterna, mas a moral se altera com o tempo. Fiquei muito impressionado com o fato, quando o Facebook já era uma rede social muito poderosa, exercendo esse muito discutível poder de censura, ele baixou essa norma de que fotos de corpos de crianças não poderiam ser publicadas. E a foto da menina vietnamita foi censurada no Facebook. A moral deste novo milênio censurou uma fotografia que foi responsável por um impacto poderosíssimo, um impacto político, que nada sensual, nada pornográfico. Depois alguém alertou o Facebook que isso era falta de cultura, de memória. Depois eles reativaram, mas sempre em contextos de denúncia. Como o fotógrafo poderia reagir? Como deveria reagir diante daquela cena? Ele deveria ajudar ou deveria fotografar para denunciar. Qual é a postura? Essa é uma discussão muito recorrente. E a outra é também que aquilo que você fotografa você vai transmitir e vai transmitir também a nudez da criança, a dor da criança e isso tem uma implicação na imagem pessoal dela, na privacidade dela de alguma forma. Qual é o limite disso é uma discussão ética muito poderosa. 

Norval Baitello Jr.: E a política das imagens também. A política de distribuição das imagens. No livro, que é fruto de uma sensibilidade do Leão com as imagens, a foto acaba se transformando numa forte arma política.

Leão Serva: Eu defendi a tese no final de 2017 e logo depois comecei um trabalho como repórter de texto acompanhando o Sebastião Salgado nessas suas viagens para a Amazônia, que resultaram num livro e numa exposição que acaba de ser inaugurada em Paris. O interessante é que ele vinha desenvolvendo esse trabalho já por quinze anos, quando em 2013 ele mergulha em viagens para tribos indígenas na Amazônia. E ele então em 2017 começa a perceber que a situação dos índios no Brasil estava muito ameaçada. Ele decide publicar parcialmente esse trabalho como uma espécie de alerta. Ele me convidou e eu fiquei muito honrado porque eu gosto muito de fotografia e ele é o Sebastião Salgado, que é um dos fotógrafos mais admirados do mundo. Desenvolvendo esse trabalho com ele e vendo também a força política porque grande parte da população brasileira, que vive uma situação dramática, não se dá conta do que o país está fazendo com os índios. E o Salgado tem usado suas fotografias tentando evitar uma tragédia.